O impostor

Levi Rodrigues
24 min readAug 28, 2020
Jardim de Inferno.

1

Aya já tinha notado que seu marido havia mudado, mas foi na noite da festa que as suspeitas se tornaram obsessão.

Carlos Fernando fazia seu discurso no aniversário de casamento dos pais. Começou erguendo a taça. De onde estava, Aya sorriu de canto de boca, as linhas dos olhos curvando para baixo e o canto esquerdo da boca curvando para cima. Cal deu um nome à expressão, o estreito. Quando se conheceram ele havia dito que foi no estreito que se perdeu. E Aya pensara que ele era um homem romântico, exceto que Cal nunca foi romântico. Sempre parecera um pouco cansado demais, desgastado e murcho. Odiava usar esse último adjetivo e assim mesmo era o que melhor descrevia seu homem. Seu homem — murcho.

Então lá estava Cal, erguendo a taça e abaixando a taça; escondendo a mão dentro do bolso da calça esporte fino franzida na cintura e dobrada nas barras dos pés; alçado elegantemente às estrelas no pequeno palco da banda; a camisa branca aberta nos primeiros botões que nem um amante latino, inapropriada, mas aventureira. E Cal nunca foi de se aventurar.

— Quando penso na minha infância — ele disse a toda a gente. — Sempre digo para mim mesmo que não podia ter vivido uma vida melhor. Meu pai é um homem paciente, a menos que acabe espionando a sua fatura de cartão de crédito e perceba que você gastou mais do que deveria. Ele nasceu um contador, vocês devem entender. — todos riram. — Tirando esse — Cal fez uma pausa cômica — Deslize — houve mais risadas. — Meu pai sempre foi, além de paciente, o homem mais sensato que conheci. Eu agradeço por isso, e agradeço ainda mais por ter sido amoroso, ao contrário de toda uma geração de homens antes dele. Papai sempre se orgulhou de amar.

Os aplausos tiraram Aya do transe, aquele no palco era seu homem? Seu homem — murcho?

— E minha mãe — Cal continuou com desenvoltura — , ah, todos vocês conhecem minha mãe.

O público concordou, conhecia Alzira muito bem.

— Mamãe nunca foi paciente e sempre achou que o excesso de sensatez faz a vida irreal. — Houve algumas risadas, mas Cal continuou atravessando essas risadas: — Mas algo une essas duas criaturas tão diferentes, o amor incondicional. E isso é bem raro. Eles se completam, e eu sei que parece um clichê preguiçoso deste que vos fala, mas também é a mais pura verdade. Mamãe o faz pagar as faturas de cartão sem reclamar. — As pessoas riram. — Eu nunca soube como ela consegue essa mágica. — Riram mais enquanto Cal dominava a oratória: — Além disso, sempre foi minha mãe que nos explicava sobre o espírito humano; o espírito da criatividade e da não submissão à comodidade, mesmo quando meu pai dizia: é melhor não escutar ela.

As pessoas gargalhavam, Aya não sabia por quê. Não foi tão engraçado assim, ou foi?

— Bem — Cal falou — , só quero dizer que estão aqui dois dos meus maiores amores. Formam uma dupla e tanto, não é?

Alguém gritou Brinde logo, quero beber!

Cal sorriu e todos riram com ele. Até Aya.

Tim-tim! — Cal disse.

E estava feito. Não foi engraçado, Aya pensou. Mas foi engraçado.

Cal tornou tudo divertido com seu jeito de fazer discurso, seu carisma mágico. Aí estava o problema, ele nunca teve jeito para discursos e nunca foi capaz de fazer humor, era incapaz até de contar a melhor piada já inventada pela civilização e fazer o público sorrir. Gaguejava. Esquecia. Perdia o fio da meada. Carisma mágico? Fala sério, absurdo! E tinha mais, ele não aprendeu nada sobre espírito criativo com a mãe, um conformado de carteirinha que adorava atestar a ausência de criatividade para quem quisesse ouvir, Aya nunca soube se fazia isso em retaliação à mãe ou porque Carlos Fernando Albernaz Augusto foi destinado ao conformismo. Ele também seria incapaz de subir ao palco e mentir para tanta gente, não com naturalidade e credibilidade. Agora mesmo parecera um ator.

O homem que ela conhecia vivia cada vez mais encolhido, andava de ombros caídos e a cabeça quase rolava pelo chão. A primeira vez que Cal foi conhecer os pais de Aya precisou tirar os sapatos para entrar na sala da senhora Michiko, o problema era que Cal tinha aversão a andar descalço. Aya notou sua garganta se contraindo, o pomo subindo e descendo, dedos das mãos convulsionando de ânsia por germes. Germes! Germes! Germes!, traía o letreiro luminoso da testa dele. Óculos embaçando, bochechas avermelhando, Aya suspirou e pensou que Cal perguntaria cedo ou tarde. Desastre anunciado:

— Senhora, será que posso tornar a calçar meus S-sa-sa-sapatos?

— Sem sapatos — Michiko disse. — Sem sapatos em casa. Brasileiro tem muito mania ruim. Usar sapato só no lado de fora, lá fora! — A mãe dela fazia gestos como se os antebraços fossem engrenagenzonas de uma máquina gigante de pinball, baixavam e subiam, arremessavam a bola invisível. — Lá fora. Lá na rua. Aqui é sem sapatos!

Os olhinhos pequenos de Michiko investigaram Cal de baixo para cima, avaliando cada centímetro do homem de ombros caídos. Quando ele foi ao banheiro, Michiko se aproximou da filha e disse:

— Homem Murcho.

— Que isso mãe? — Aya ficou genuinamente horrorizada.

— Não. Vê se entende. O Homem Murcho não é bom pra você. Vive sempre murcho.

Mãe!

— Ah. Tá bom, né. Você sabe o que faz.

Aya se lembrou disso antes que Cal voltasse para a mesa depois do brinde. Quando ele se sentou ao lado dela, repousando a mão da aliança sobre as mãos dela, Aya pensou que esse sujeito não era o marido dela. Esse Cal era um impostor.

2

O filho mais velho deles não parava de escutar a música, tinha só dois dias que o garoto comprou o disco novo do A-ha e Aya já estava enjoada. Essas bandas novas lançam músicas cada vez mais estranhas. Um tal de Take On Me. Tudo que identificava era uma gemedeira — Eiiii ôôôôôôô uíííííí e ai nheeee Ohhhhhhh — , o garoto começava logo de manhã, acordava toda a casa.

O moleque achava genial, deixou o cabelo crescer um pouco e resolveu que uma boa quantidade de gel (todos os dias) deixaria a peruca espetada e assim estava perfeito para ir à escola. Ela achava vergonhoso, mas não desanimaria o garoto, em especial porque ele já tinha problemas de adaptação. Ninguém na família foi o que se pode chamar de gente popular, a começar por Cal. A herança genética de Fernandinho, Aya supôs, era a invisibilidade, como se fosse um monte de latas e garrafas amarradas ao para-choque.

Fernandinho desceu a escada e pegou a tigela de cereal com leite, deu duas colheradas, ainda em pé, e olhou o relógio. Nisso disparou para a escola. Aya sempre saía correndo atrás do filho, implorando para que ele terminasse de comer o café da manhã, mas naquele dia tinha outra coisa para fazer. Melhor seria se Fernandinho não estivesse na cozinha. Os outros dois pequenos estavam dormindo quando Cal desceu, sentou-se com toda a calma do mundo para folhear o jornal na frente da tigela de cereal.

— Fê já se mandou?

— Já — respondeu ela.

— Aquele garoto — Cal disse rindo.

— Você vai à apresentação da escola?

Cal a olhou sobre a borda cinza do jornal.

— Claro.

— Você sempre diz que vai, mas nunca aparece.

— Querida, eu vou.

— Tudo bem — Aya disse diplomaticamente e se sentou para beber o suco de laranja. — Vai querer café? Está no ponto. — ela olhava a cafeteira.

Cal nunca saía de casa antes de uma caneca transbordando de café e nunca ia até a cafeteira. Aya quem levava a caneca até ele e precisava adoçá-la com duas colheres de açúcar mascavo. Nos dias em que ele não estivesse atrasado para o trabalho, deveria ter creme. É claro que ela providenciava tudo.

— Não — ele respondeu. — Vou ficar no suco que nem você.

Ela estreitou o olhar, uma investigadora estudando o suspeito.

— Cal, posso fazer uma pergunta?

— Claro, querida.

— Você tá bem?

Ele abandonou o jornal, pôs os cotovelos em cima da matéria que anunciava que Tancredo Neves estava morto. Olhou diretamente para ela, sustentando a tensão de maneira profissional. O antigo Cal jamais abandonaria o jornal e evitava o quanto pudesse contatos visuais tão diretos e longos.

— Estou ótimo — Cal afirmou.

— Tem certeza?

Ele pareceu refletir um bocado.

— Escuta, estou tão ótimo quanto pode estar um homem que tenha sofrido um capotamento de carro, ficado duas semanas em coma e sofrido múltiplas cirurgias. Estou tão ótimo quanto pode estar o sujeito que passou por fisioterapias dolorosas. E, olhe para mim, estou seguindo a vida, não é?

— É que você parece… diferente — Aya arriscou e sentiu o coração comer os pulmões; pular pelo trato digestivo e explodir na garganta.

— Bem — disse Cal com tranquilidade — , estou diferente, acho. Olhe para o meu rosto, não parece um pouco diferente? Meus lábios estão mais finos, meus olhos estão mais jovens. Até minhas orelhas estão um pouquinho diferentes. E o nariz? Ainda não me acostumei com o nariz. É arrebitado como aqueles caras do cinema.

Ela riu.

— Você está bonito, querido.

— É, acho que nunca fui um galã.

— Não diga isso. Eu sempre te achei bonito.

— Você é uma linda. Mas vamos falar a verdade, eu me sinto mais bonito agora. Estou mais bonito. Se soubesse que uma plástica poderia fazer isso por um homem, talvez eu não esperasse sofrer um acidente para entrar na faca — Cal riu.

Aya se sentiu desconfortável, até a voz dele estava diferente. Podia não ser apenas o tom confiante. Cal a investigava, fazia contato visual, parecia penetrá-la e vasculhar cada pedacinho dela. Ele pode me ler? Ela parou de pensar como se isso pudesse evitar ser descoberta.

— O que exatamente você quer saber, querida?

Ela se atrapalhou.

— Só… só… Sei lá. Acho que só quero saber como você se sente.

Ele sorriu, foi um sorriso lindo e brilhante.

— Me sinto ótimo — respondeu, levantou-se da cadeira, caminhou na direção dela, puxou-a de maneira suave pelas mãos.

Ele a levou para o quarto e fez amor com ela como nunca antes.

3

— A gente trepou, Daúde. Trepou. Entende isso?

— Que bom, amiga. Mas você está falando um pouco alto para um ambiente de trabalho. Quer mudar o tom e me confessar direitinho? Sabe que adoro histórias picantes. — Daúde a puxou até a copa. — Fale, conte tudo.

— Ele me chupou.

AYA!

— Desculpa, mas é verdade. Em quinze anos de casamento, sabe quantas vezes me chupou?

— Quantas? — Daúde perguntou, divertindo-se para danar.

De tão excitadas, quase derrubaram a cuba de frutas do balcão. Precisavam tomar cuidado, o gerente não gostou nada daquela vez em que acidentalmente quebraram a cafeteira.

— Três vezes — Aya contou extasiada. — Todas as três na manhã de hoje. Cal está deixando a barba crescer e a sensação foi… diferente.

— Caramba, sua louca!

— As crianças acordaram e ficaram vendo televisão, esperaram pelo café da manhã por umas horas, eu nunca havia me esquecido delas antes.

— Não se culpe, você é uma ótima mãe.

— Não estou me culpando. Para ser sincera, não estou reclamando, foi ótimo. Ninguém morreu de fome enquanto eu gozava.

Daúde riu tão alto que o gerente foi até a copa achando que Aya e Daúde estavam brigando.

— Desculpa, Orlando — disse Aya sentindo vergonha. — Daúde lembrou de uma coisa engraçada que aconteceu no aniversário de casamento dos pais de Carlos Fernando.

— Uau, deve ter sido um festão.

— Foi — disse Daúde, segurando o riso. — Uma festa com direito a boca livre!

Daúde gargalhou e Aya a conteve.

— Que bom que se divertiram. Mas olha só, não fiquem muito tempo na copa. Tem um carregamento inteiro de sofás pra vender antes de abril terminar.

— É impossível e você sabe. Com essa economia não dá — Daúde disse. — E em menos de dez dias? É loucura.

— Façam tudo que precisarem, nem que seja propaganda de boca em boca — Orlando disse.

Elas desataram a rir, quase choraram.

— Sabe quem poderia ajudar? — perguntou Daúde.

Orlando olhou para ela com atenção.

— Carlos Fernando, o marido de Aya.

Aya cutucou Daúde.

— Ele é bom de boca — Daúde disse fazendo guinchinhos.

Gargalharam tanto que Orlando se deu por vencido e, deslocado, voltou ao escritório. Deixou as duas conversarem em paz. Depois de acalmarem as barrigas, Daúde perguntou:

— Quando é a apresentação de Fernandinho?

— Amanhã. Você vai?

— Vou ver se consigo, mas alguém precisa ficar aqui. Orlando não vai gostar.

Aya concordou. Orlando a lembrava do antigo Cal.

Antigo Cal, pensou e a ideia pareceu adequada.

4

Quando Aya chegou ao Ginásio ficou impressionada.

Apinhado de pais e irmãos; tios e tias; gente que provavelmente veio de longe para ver adolescentes dublarem músicas estrangeiras num palco improvisado de escola particular, supunha que muitos namorados e namoradas, que estudavam em outras escolas de Rio Bonito, também estivessem presentes e camuflados em meio à multidão comportada. Fernandinho, ela sabia, não tinha namorada e isso a entristecia, o filho havia puxado ao antigo pai — antigo Cal, mais uma vez essa ideia a acertava com força — , tímido e um bocado desleixado, o tipo de adolescente que possui dificuldades imensas ao se relacionar com garotas e não as compreende nem um pouco. Fernandinho era o equivalente dos relacionamentos sociais a um indivíduo de visão perfeita (e sem qualquer educação específica para leitura em braile) que tenta decifrar Moby Dick para cegos. O fato a enchia de desanimo, não podia falar sobre isso em voz alta, mas pensava em mandá-lo para a terapia, já que, no fundo, seu maior medo era esculpir um filho tão parecido ao antigo pai que seguisse conformado com a própria ignorância por toda a vida adulta. Um sujeito inarticulado, insensível às mulheres. Imaturo para importantes questões que compõem a vida social. Aya achava que soltar um filho assim no mundo não seria diferente de atentar contra mulheres que pudessem vir a se relacionar com ele. Não que Cal tivesse sido violento algum dia, mas algo a dizia que Fernandinho poderia desenvolver misoginia. Não se tratava de um medo racional, só medo. Intenso medo. Estrangulou o pensamento como quem apertasse um ovo na mão. Seguiu pelo corredor de cadeiras numeradas, algumas ainda vazias faltando vinte minutos para começar a apresentação.

Ressentiu-se por achar que Cal não viria. Ela chegou à quarta fileira, local em que supunha encontrar a numeração de seu bilhete, olhou o convite mais uma vez, cadeira número 32. Caminhou pedindo licença e, espremendo-se para não chutar tornozelos, sentou-se na sua cadeira, já olhava para o palco. Havia vinte e três anos que ela se formara em um palco menor que esse, mas no mesmo ginásio. Turma de 1962.

Aya era a única entre meninos e meninas que tinha os olhos meio puxados, a chamavam de Japa ou China mesmo que ela fosse tão brasileira quanto qualquer outra. Cante o hino do Japão, Japa. Diga alguma coisa em chinês, China. Não tinha amigos naquela turma e ninguém assinou seu uniforme quando se formou, prática comum aos estudantes da época.

Com a coluna em linha reta, e torcendo para que nenhum dos pais se recordasse dela, da época de escola — O que, aliás, é o mais provável que ocorra — , fitou a cortina azul fechada. Sentiu a mão quente em suas pernas e quase gritou.

— Te assustei? — Cal perguntou. Sentara-se na cadeira 33.

Querido…?

Ele sorriu, só isso. Sorriu como se fosse a coisa mais normal do mundo finalmente aparecer em uma apresentação dos filhos em mais de… cacete, Cal nunca tinha aparecido antes; odiava multidões e todos os germes disseminados em ambientes fechados. Aya nada disse, o sorriso dele era espécie de confissão. Sei que você sabe que não sou seu marido, podemos apenas apreciar o espetáculo? Pelo menino. Pelo momento dele.

— Tudo bem? — Cal perguntou, em uma inversão de papéis e como se pudesse ler sua mente.

— Tudo.

Estava tudo bem mesmo?

Que Deus a perdoasse, porque esse não era seu marido, mas tudo estava muito bem.

Quando Fernadinho entrou no palco, Aya, que conhecia seu filho por exatos 15 anos — fora o tempo de gestação — , mal pôde acreditar no que viu.

5

— Filho, você estava diferente lá em cima — Aya disse, sentia que o mundo conspirava contra ela, mudando cada um dos membros de sua família em silêncio.

Estavam sentados na lanchonete, numa dessas mesas de aço com estampa de cerveja. Fernandinho estava ao lado da mãe, folheava uma revista de terror de banca de jornal. Kripta. A edição já tinha uns cinco anos e Fernandinho a lia pela primeira vez. Trocou dois sanduíches pela revista na hora do recreio e, embora o valor parecesse alto por um exemplar tão velho, valeu a pena, disse quando se sentaram.

— É, acho que sim — Fernandinho disse sem tirar os olhos da revista.

Aya suspirou, olhou para o balcão da lanchonete-trailer, podia notar que Cal encontrava dificuldades em fazer o jovem atendente memorizar o pedido.

— Você estava, sim. Estou dizendo — Aya falou soando preocupada.

Lembrava das reações do filho aos gritinhos das meninas, as piscadelas. Os sorrisos autoconfiantes. As danças sedutoras. O filho cortou e deixou para trás as latas amarradas no para-choque, algo inédito para qualquer membro daquela família (embora talvez não para Cal). Fernandinho imitara tão bem o Van Halen que, por um segundo, não se assemelhava ao filho dela (e do antigo Cal), mas ao próprio Eddie Van Halen.

— Certo. Eu estava diferente, mãe.

Aya arrancou a revista da mão do filho e a fechou, colocou-a sobre a mesa e apoiou seus braços sobre a capa. No balcão do trailer, Cal gesticulava, desenhando no ar o formato de hambúrgueres especiais com rodelas de cebolas empanadas; batatas fritas médias; duas garrafas geladas de Coca-Cola e o copão de milk-shake campeão. A mímica era muito boa. Fernandinho olhava para a mãe com sincero olhar de desdém.

— Presta atenção quando falo contigo, sou sua mãe.

Fernandinho arregalou os olhos.

— O que foi, mãe?

— Não entendeu nada do que eu disse, certo?

— Mãe, eu estava lendo. Me deixa em paz!

— Disse que você não parecia você mesmo no palco. — Aya ouviu a própria voz soando de um radinho distante, parecia obcecada, e não gostou nada disso.

— Entendi. — Fernandinho deu um sorriso. — Resolvi fazer um monte de coisa diferente a partir de agora.

— Por quê?

— Sei lá, mãe. Porque sim. — O filho parecia espantado, não havia feito nada de errado, divertira-se como qualquer garoto de 15 anos. — Se não mudar os hábitos não posso esperar que as coisas mudem pra mim.

Ela quase soltou uma gargalhada nervosa.

— De onde você tirou isso?

— Papai disse.

— Seu pai falou com você?

— Ele conversou comigo durante um tempo.

— O que mais ele disse?

Mãe!

— O quê?

— Conversas. Sei lá, sabe? Conversas de pai e filho.

Conversas entre homens — foi o subtexto que Aya ouviu.

Ficou pensando no filho dançando e atravessando o palco, empunhando a guitarra de papelão como se fosse de verdade. Fernandinho acreditou que era de verdade, isso o garantiu centenas de saudações.

— Não sabia que você ainda gostava de Van Halen — Aya disse. Atentava-se ao balcão, de onde um satisfeito Cal estava prestes a voltar para a mesa, encontrou um amigo no caminho e agora batia papo.

— Eu não gosto mais, tá bom? Prefiro mais sintetizadores e menos guitarras — o filho disse e parecia um pouco angustiado com o inquérito de Aya. Em seguida, profetizou: — Sintetizadores são o grande lance do futuro. Mas a gente precisava de algo familiar para levantar o público. As outras apresentações iam ser chatas, e a gente já sabia. Agora, pode devolver a revista? Não fiz nada de errado.

Fernandinho estendeu a mão e ficou esperando que ela devolvesse a revista. Aya hesitou e ele cansou de esperar e cruzou os braços numa birra infantil. Mas o filho tinha razão, não fez nada de errado.

Aya estalou um muxoxo tranquilo, só porque encontrou no olhar entediado do filho a expressão marca registrada do garoto. Uma lata permanecia amarrada ao para-choque. Ele não estava mudando à maneira de Cal. Se é que isso faz sentido. Achava que fazia. Fernandinho parecia desenvolver personalidade. E Cal? Aya não sabia. Só sabia que quando imaginou que o filho mudou como o marido — a estranha mudança definitiva — ficou aterrorizada. E por quê? Porque o que aconteceu a Carlos Fernando foi fatal. O antigo Cal morreu. Não mudou por novos hábitos (como Fernandinho sugeriu), realmente morreu naquele acidente. Sem metáforas.

Cal retornava para a mesa em passos cuidadosos, mãos vazias e a esperar que o jovem do balcão, cheio de espinhas, tivesse anotado suas mímicas teatrais sem equívocos.

O marido desconfiava. Aya se sentia conflituosamente feliz. Preciso me decidir se gosto ou não gosto do impostor. Gostava, só não poderia lidar com a ideia de a transformação ocorrer ao filho, pois amava demais para suportar a hipótese de que Fernandinho morresse concreta ou metaforicamente.

— E aí, crianças? — perguntou Cal, ignorando que os gêmeos não estavam presentes e que o aborrecente que fabricaram sempre tinha ataque de nervos quando era chamado de criança. Fernandinho não protestou. Outro gol para o novo Cal. — Sobre o que estão falando?

— Estava dizendo para Fernandinho que é melhor a gente não demorar — respondeu Aya. — Minha mãe é uma pessoa maravilhosa, mas tenho quase certeza de que quando chegarmos em casa vamos dar de cara com ela empanturrando as crianças de doces. Já falei que não quero isso e ela faz o quê? Teima!

Fernandinho ficou olhando a mãe, pensando se deveria desmenti-la ou não. Aya deu uma joelhada no filho e o devolveu sua revista. Acordo feito.

Imaginou que se aborrecia demais. Era muito com que se preocupar. Vender sofás em dez dias; a morte do marido e o surgimento do impostor das cinzas do antigo Cal; o filho em nova primavera; crianças com seus dentes novos em folha se liquefazendo em açúcares e cantarolando músicas da língua materna, uma língua da qual Aya se desprendera na adolescência.

— Não, não — disse Cal. — As crianças vão ficar bem. Sua mãe é ótima com elas.

Nada de fantasias, ela pensou. Esse é um impostor. O Cal antigo tinha medo de Michiko, ficava tão apavorado que tinha crises de pânico ao deixar os filhos na casa da avó.

Aya precisaria confrontá-lo.

6

E decidiu confrontá-lo na madrugada de quinta-feira. Não que tenha planejado, apenas que, quando acordou suada de um pesadelo em que o impostor a estrangulava na cama, notou que Cal não dormia ao lado. Viu um vulto sorrateiro atravessando a janela lá fora, o quarto deles dava para o corredor que levava ao quintal. O vulto era Cal. Ele agia de maneira estranha, parecia em transe.

Levantou-se calçando os chinelos e ajeitando a longa camisola. A camisola estava tão encharcada que se ajustava ao corpo de maneira transparente, eles tinham feito um sexo delicioso e tenso antes de dormir, e Aya já não tinha certeza se suara durante o pesadelo ou se adormeceu suada durante a noite quente.

Ela passou pelo corredor interno em direção à sala, encontrou a porta da varanda aberta. Passou pela porta e seguiu para o quintal. O quintal vazio ainda guardava a antiga casinha de cachorro e a churrasqueira de alumínio caindo aos pedaços. Inspecionou todos os cantos e guinou em direção ao outro corredor lateral, contornando a propriedade. Deu-se conta que ela mesma parecia uma alma penada.

Ouviu os próprios passos secos sobre o concreto cru, afastou com as mãos uma das samambaias que crescia nos canteiros do muro de chapisco, encontrou Cal entre o jardim e o muro que ladeava a propriedade na Bela Vista. Ele se inclinava na direção da rua de pedras, tinha os olhos voltados para o céu.

Pensou em chamá-lo, e hesitou por

medo

medo

medo de quê?

Cal, paralisado como uma rocha, olhava de forma concentrada para o céu. Aya reparou que, de pouco em pouco, ele se inclinava para frente como faria um bêbado desorientado. Aya caminhou com cuidado pelo jardim e pisou em um galho. A reação dele ao som foi imediata e assombrosa, virou-se na direção dela. Ela achou ter visto nele espécie de onda sob a superfície da pele. Um rosto parcialmente transformado, que ao perceber que é flagrado em sua forma real, torna a vestir sua máscara protetora. Ela quase saltou de pavor, a onda que varreu a pele de Cal foi ligeira e tenebrosa, havia monstruosidade invasora.

— Querida — o impostor disse com os lábios de Cal. — O que tá fazendo acordada?

Ela gaguejou, mas se recompôs.

— O que você está fazendo acordado?

Ele fez uma expressão que ela associou à nostalgia e ao medo.

Ele sentia medo dela?

— Já reparou que conforme o tempo passa — Cal disse — a gente se esquece de olhar para as estrelas?

Agora imaginou que Cal pudesse está passando por um derrame.

— Nunca tinha…

— É verdade. — Carlos Fernando a interrompeu. — A gente acha que são luzes no céu, mas, na verdade, são memórias de um tempo distante. Cada uma das memórias é um mundo em potencial… Cada uma me deixa mais…

Ele se interrompeu. E Aya notou embaraço passar por ele — olhos de Cal e embaraço de impostor. A vergonha era honesta, mas traía o disfarce.

— Desculpe, querida. Não queria te assustar, juro. A verdade é que perdi o sono. Só isso.

Cal caminhou até ela. Aya decidiu confrontá-lo, mas ele a abraçou pela cintura e ela se esqueceu completamente. Ele a levou para o quarto e ela desejou tanto o impostor que, na verdade, achou que jamais havia se apaixonado pelo antigo.

7

O dia da revelação tinha tudo para ser como qualquer outro, mas foi inesquecível.

Cal teve uma ideia repentina e Aya a aceitou porque estava apaixonada. Ele comprou um pacote de final de semana para estadia em uma pousada cara longe da cidade, deixaram as crianças com os pais de Cal, seguiram a estrada para Visconde de Mauá.

Ela não hesitou, mas, durante o caminho para a pousada, ficou pensando que deveria ter recusado a viagem. E como poderia se Cal fez a proposta mais aventureira de suas vidas, como uma segunda lua de mel? A ideia de que ele estava arrastando para longe e daria sumiço na esposa desconfiada chegou a cruzar sua imaginação, e Aya a afastou com facilidade surpreendente.

Não podia se conter, não podia dizer a si mesma que viajava com um homem desconhecido, porque aquele ali era o sujeito que imaginara que Cal fosse antes que se casassem. Outro tipo de ideia maluca: como uma mulher casa com alguém que não conhece bem? Foi isso que lhe dissera Daúde meses antes do acidente de Cal. Aya desabafava com a amiga sobre a essência modorrenta do casamento.

Então, bem, ali estava o homem que era quase tudo que ela sempre desejou — e se não era tudo, ela pensou, por que não supor que havia tempo de se tornar? A hipótese de que o futuro reservava surpresas mais agradáveis quase a fazia entrar em espécie de crise existencial semelhante à conflituosa percepção que teve ao presenciar seu Fernandinho dançando no palco.

Seu Fernandinho, líder imaginário de uma banda famosa, fotografado por Helen Moraes. A mesma Helen que, durante a escola, chamava-a de china e dizia: Por que não volta para a china, China?; Aqui não tem espaço para você, China. A mesma Helen que namorava o amor platônico de escola de Aya, o Fred de Jardim, que já aos quinze pilotava o carro veloz e levava meninas às festas mais legais, meninas como Helen. A mesma Helen que nunca fotografaria Aya por admiração, não a chamaria para fazer parte do Grupo Popular. Fernandinho era o novo Fred de Jardim e claro que a filha de Helen Moraes estava na primeira fila, sorria e comentava sobre o menino oriental de cabelos espetados, que fazia o melhor solo de papelão da cidade. Catarse, isso mesmo. A família Izume Augusto rompeu com o ciclo de invisibilidade.

Se continuassem assim, a vida para os gêmeos seria um umbral convidativo, franco e brilhante. O sonho é real. Ela percebeu essa realidade muito bem quando deram entrada no chalé de madeira chique e quando saíram para jantar no restaurante caro e voltaram ao quarto para o jogo da sedução. Cal parecia ansioso que nem um homem apaixonado. A chuva começou 10 minutos após baterem a porta de madeira, em seguida, pularam na cama e fizeram amor.

A ventania continuou por uma hora ou mais. A noite foi cortada por raízes luminosas. E então eles se levantaram, comeram os restos do jantar no papel-alumínio e sentaram-se aos sofás da sala. Quando a luz acabou, acenderam velas. As palavras saltaram dela antes que pudesse evitar.

— Você não é ele — Aya disse e achou que tinha estragado tudo.

Tampou a boca com tanta força que sentiu o calor do tapa. Cal a olhava com a atenção perplexa. Os relâmpagos infiltravam luzes púrpuras no rosto dele e ela tensa a procurar pela queda da máscara, se ele revelasse seu verdadeiro rosto ela gritaria? Gritaria se tornasse a ver — agora na totalidade — o monstro que o habitava?

— Do que está falando, querida? — Cal riu.

Ela não aguentou. Estava apaixonada, mas não pôde suportar a dissimulação:

— Você é um homem muito melhor do que Cal jamais foi. Mas sabe o que ele nunca fez? Nunca mentiu para mim, nunca subestimou minha inteligência. Isso é inadmissível — ela quase gritou.

Cal saltou da poltrona. Estava de frente para ela e se inclinou um pouco para conversar.

— Tudo bem. O que quer saber?

Ela hesitou. Essa era uma boa pergunta.

Não seria o que ela queria saber, mas: ela queria saber?

— Quem é você? — perguntou antes que se arrependesse.

Outro relâmpago iluminou o rosto dele. O barulho foi tão intenso que ele olhou pela janela como se procurasse algo ou se lembrasse de algo que o assustava.

— Sou Cal. O seu Cal — ele a disse e tornou a se sentar

— Não. Quero dizer, talvez… Droga! Estou confusa. — Aya esfregou os olhos. — Escuta, responda sim ou não. Tá?

— Sim.

— Ok. Vou começar. Você é Cal?

— Sim.

— E sempre foi Cal?

Ele refletiu.

— Não.

— Quando começou a ser Cal?

— Estou confuso, querida. Não posso responder sim ou não pra essa pergunta.

— Só responda da melhor maneira.

— Na noite do acidente… de Cal.

— O que aconteceu naquela noite?

— É complexo de explicar.

— Faça o melhor que puder.

— Eu cheguei, cheguei pela primeira vez. Cal dirigia, voltava para a cidade, estava perto de um viaduto. Ele tinha pensamentos angustiantes, e sei desses pensamentos pregressos porque herdei todos eles. Então eu simplesmente cheguei…

— Chegou de onde?

— Vamos dizer que vim de fora.

— Onde é fora?

Cal olhou para a janela, apontou para o céu noturno tempestuoso, para os relâmpagos que acendiam a escuridão. Aya compreendeu que Cal apontava para além dos relâmpagos e para escuridão além do céu.

Ela ficou ofegante, não pôde evitar.

— E todo esse tempo, eu achava que era loucura.

— Não, não é.

— Por que não me contou?

— E como faria? — ele perguntou. — Diria que sofri um acidente, assim como o seu marido sofreu o dele? Diria que não pude evitar e que fui lançado no tempo e espaço? Que caí sobre o corpo de seu marido e lhe expulsei do próprio corpo, que provavelmente causei o acidente? Não que quisesse matá-lo, só queria sobreviver.

Era muita informação.

Entende? — ele disse com mãos abertas em gestos tão indagativos quanto o tom de voz. — Não posso explicar isso pra alguém que acaba de descobrir que seu marido sobreviveu ao acidente.

— O coma.

— Tempo de adaptação. Luta do hospedeiro. Luta pelo campo de batalha, pela moradia… Nem sei ao certo.

— Você… você é. — Aya não sabia o que estava tentando dizer com isso.

— Se serve de consolo, eu gostaria de dizer que nunca quis te magoar, não queria que enlouquecesse e também não queria mentir.

— Quando você vai voltar pra casa? E se voltar, terei o Cal de novo?

— Não e não.

— Como assim?

— Não tenho como voltar. É impossível pra mim. Não posso voltar no tempo ou no espaço. Respire agora. Respire fundo.

Ela respirou. Eles ficaram calados por horas e Cal interrompeu aquele silêncio, pois já não o aguentava mais.

— O que posso fazer por você? — Cal perguntou. — Diga, farei tudo que puder.

— Acha que um dia pode amar as crianças?

Ele se surpreendeu com a pergunta, ela explicou:

— Não podem ficar sem um pai.

— Querida, você não entendeu ainda. Eu os amo. Amo loucamente. Não seria capaz de entender o amor humano se não tivesse de lidar com o que sobrou do seu marido aqui dentro. — O impostor apontou para o próprio peito, Aya achou tão meloso e tão clichê que quase correu para fora do quarto, e para dentro da tempestade, mas algo a acalmou. A ideia (ainda imatura) de que o impostor aprendia a lidar com as sensações humanas e uma nova vida. O alienígena, seja lá o que fosse, era mais inteligente que o Cal antigo, talvez um tipo de vida superior aos seres humanos, muito embora Aya não acreditasse que fosse mais inteligente que mulheres como a mãe dela, por exemplo, ou ela mesma. Mas esse Cal era esforçado e sempre faltou esforço ao velho Cal.

— Eu…

— Te amo também — Cal disse. — Por que acha que nos trouxe até aqui? Queria contar tudo, não sabia como, mas claro que queria. E também queria que você soubesse o quanto amo essa nova vida. Ainda que pudesse voltar para casa, não faria o menor sentido para mim. Estou em casa… uma casa como nunca tive, antes ou depois da guerra.

Guerra? Que guerra? Aya foi tomada por sensação tão desconexa que a fez levantar da poltrona e se jogar no colo dele — do impostor, do alienígena — , conflituosamente grata por uma guerra que desconhecia e incomodada com o próprio egoísmo.

No fundo, Aya sempre soube que o impostor não nasceu neste planeta, a razão estivera enterrada dentro dela todo esse tempo, a razão gritava para ser ouvida e percebida pelo lado lógico do cérebro. Teve a certeza quando o viu olhando as estrelas.

— Você sente saudades? — ela perguntou, achando que a pergunta não faria o menor sentido.

— Às vezes. Mas muitas memórias estão danificadas. Sinto saudades, mas não sei do quê.

— Deve ser confuso.

— Acho que é tão confuso quanto é para você.

— Você conversou com Fernandinho, o que disse a ele?

— Se quer mesmo saber, falei pouco. Escutei o que ele tinha para falar. Ele desabafou um bocado e dei alguns conselhos.

Aya sorriu.

— Cal nunca o ouvia… Desculpe, não queria falar sobre isso. Acho que estou nervosa e as coisas ficam saltando da minha boca.

Percebeu que o novo marido parecera deslocado, era como falar do ex-marido com o atual, supunha.

— Não se preocupe. Você pode falar sobre o que quiser. Gosto de escutar. Gosto de aprender. Tenho muito a descobrir com você… com vocês. Só quero que fique aqui comigo, como estamos agora. Abraçados. Acha que pode fazer isso por mim?

Aya acenou com a cabeça, um sim condicional.

— Desde que use seu rosto quando estivermos sozinhos, seu rosto verdadeiro.

Ele hesitou.

— Não sei se vai gostar do que vai ver.

— Eu o amo — Aya o disse — sem condições.

Cal afastou a máscara, Aya não se esquivou. Continuou abraçada ao grotesco alienígena. Não era um monstro, afinal, era seu marido.

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